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Coisa Julgada - Juros Moratórios - Execução de Sentença - Alteração Superveniente da Taxa Legal dos Juros Moratórios - Regime Revisional Próprio das Sentenças Determinativas - (CPC, Artigo 471, I) * Sumário: 1. Introdução. 2. Coisa julgada. 3. Limites temporais da coisa julgada. 4. Juros legais (moratórios). 5. Direito intertemporal. Alteração da taxa dos juros legais após a sentença. 6. Como rever os efeitos da sentença afetados por vicissitudes da relação jurídica continuativa. 7. Conclusões. 1. Introdução A alterabilidade do regime legal dos juros moratórios apresenta situações interessantes quando ocorre a superveniência de regras à sentença transitada em julgado. É sobre esse tema que, à luz do art. 471, I, do CPC, desenvolveremos as notas e considerações que se seguem. 2. Coisa julgada A coisa julgada, em seu aspecto material ou substancial, é o fenômeno que, ao fim do processo de conhecimento, torna imutável e indiscutível a definição da situação jurídica conflituosa efetuada pela sentença de mérito, contra a qual não mais caiba recurso (CPC, art. 467). Em torno do objeto do processo é que se assenta a res iudicata, tornando o conteúdo da sentença a lei individualizada e concretizada, “nos limites da lide e das questões decididas” (CPC, art. 467). Ao contrário da lei genérica, que contém abstrata previsão de uma norma aplicável a todos os fatos e pessoas que venham a se colocar na situação imaginada pelo legislador, a força e destinação da sentença circunscreve-se apenas ao quadro fático-jurídico objetiva e subjetivamente delineado no processo, ou seja: a) Do ângulo subjetivo, “a sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não beneficiando, nem prejudicando terceiros” (CPC, art. 472). b) Do lado objetivo, a sentença de mérito, “tem força de lei nos limites da lide e das questões decididas” (CPC, art. 468). Para se delimitar a coisa julgada é necessário recorrer às regras de identificação do objeto de um processo, que, por sua vez se reportam a três elementos essenciais: partes, pedido e causa de pedir. De tal modo, reconhece-se a presença da res iudicata quando entre duas ou mais causas se depara com a reprodução da anterior já definitivamente decidida (CPC, art. 301, § 1º); e para que essa identidade seja reconhecida, exige a lei que todas tenham “as mesmas partes, a mesma causa de pedir e o mesmo pedido” (CPC, art. 301, § 2º). Em síntese, pode-se afirmar que o objeto do processo e da coisa julgada se identifica com o direito que se fez atuar em juízo, o qual se define à luz das normas de direito substancial, e se circunscreve aos limites traçados pelo direito processual segundo os três elementos clássicos consistentes nas partes (sujeitos do processo), no pedido (objeto da demanda) e na causa de pedir (fatos constitutivos) 1. 3. Limites temporais da coisa julgada Como a res in iudicium deducta é enfrentada pela sentença tal como se achavam os fatos e as regras jurídicas ao tempo do conflito gerador do processo, surge o problema de delimitar, no tempo, a prevalência da indiscutibilidade e imutabilidade da regulamentação concreta traçada pelo comando do julgado. Se a relação jurídica material foi acertada em torno de fato isolado e consumado antes da sentença, a regra é a que veda venham as partes a rediscuti-lo e o juiz a reapreciar os efeitos já acertados pela sentença (CPC, arts. 467 e 471), Há, contudo, no plano de direito material, relações jurídicas duradouras e complexas, cujos efeitos se repetem ao longo do tempo e se revelam sensíveis às mutações tanto de conteúdo fático como de direito. A sentença que colheu a relação jurídica continuativa a meio caminho, não pode impor a imutabilidade própria da res iudicata a toda a vida futura daquele relacionamento, se o próprio regime de direito substancial pressupõe a possibilidade de mutações supervenientes. É precisamente por essa circunstância que se denominam sentenças determinativas aquelas pronunciadas sobre uma relação jurídica material suscetível de variações futuras em seu conteúdo. Ciente dessa eventualidade jurídica, o art. 471, I, do CPC, dispõe que “nenhum juiz decidirá novamente as questões já decididas, relativas à mesma lide, salvo: I – se, tratando-se de relação jurídica continuativa, sobreveio modificação no estado de fato ou de direito”. Se tal houver ocorrido, o mesmo dispositivo legal permite à parte “pedir a revisão do que foi estatuído na sentença”. Não se trata, propriamente, de alterar a decisão trânsita em julgado, mas de julgar o quadro novo superveniente à sentença, por contingência do próprio direito material. A imutabilidade persiste para tudo que ocorreu no relacionamento das partes, enquanto o quadro de fato e de direito permaneceu nos termos apreciados e definidos pela sentença. Depois que eventos posteriores impuseram inovações que afastaram o relacionamento material dos parâmetros da coisa julgada, este se tornou passível de rediscussão e reapreciação, justamente por representar situação jurídica estranha àquela revestida da força de coisa julgada. Diante das relações jurídicas continuativas, adverte PONTES DE MIRANDA, que são as regras jurídicas pertinentes que, por si mesmas, projetam no tempo os seus pressupostos, “admitindo variações dos elementos quantitativos e qualitativos, de modo que a incidência delas não é instantânea como a sucessão causa mortis, as obrigações dos locatários e dos locadores, a transmissão da propriedade”. Ignorar os efeitos naturais da futura modificação das circunstâncias entraria em contradição com a própria regra material aplicada pela sentença. Dessa maneira, não se diminui em nada a força material da coisa julgada. O que há é simplesmente um “caso especial de regra de direito material”, cuja observância nem mesmo se pode considerar como caso de rescisão do julgado” 2. O que ocorre no plano processual, quando se aplica o art. 471, I, do CPC, não é, como esclarece PONTES DE MIRANDA, uma “modificação da sentença, e sim da sua execução” 3. A coisa julgada está voltada para o passado, enquanto a revisão volta-se para o futuro. Apenas os efeitos da sentença, a partir de determinado momento, cessam ou alteram-se 4. É por isso que alguns autores, ao enfocar o tema das relações jurídicas continuativas, falam em “limites temporais da coisa julgada” 5. O assentado pela sentença não se altera, nem é revogado, apenas deixa de ser aplicável ao relacionamento jurídico atual entre as partes, porque este, no todo ou em parte, não é mais o mesmo que o julgado havia acertado 6. Em sede de doutrina, já tivemos oportunidade de assentar que as relações jurídicas continuativas, sem quebra da coisa julgada, “podem ser afetadas por modificação superveniente da norma jurídica que as rege” 7. Na jurisprudência o STF decidiu que “a coisa julgada não impede que a lei nova passe a reger diferentemente os fatos ocorridos a partir de sua vigência” 8. 4. Juros legais (moratórios) Prevê o Código Civil os juros e a correção monetária, como efeito legal da mora do devedor (art. 395), não dependendo sua aplicação, pois, de cláusula ou convenção entre as partes. Também sua taxa é estipulada legalmente, embora possa ser alterada por disposição contratual (Cód. Civil, art. 406). É por se tratar de obrigação ex lege, que a lei processual impõe a condenação do devedor em mora aos juros legais, independentemente de pedido do credor 9. Por outro lado, o regime jurídico da obrigação pelos juros legais é o das relações jurídicas continuativas, pois sua incidência protrai-se no tempo enquanto perdurar a mora, ficando, por isso, sujeita às vicissitudes das inovações de fato e de direito supervenientes, tal como prevê o art. 471, I, do CPC. É em razão de sua natureza de obrigação legal e continuativa que nem mesmo a omissão da sentença a seu respeito impede que na liquidação e na execução venham a ser incluídos os juros moratórios (ou juros legais). Figura em jurisprudência sumulada do STF o enunciado segundo o qual “incluem-se os juros moratórios na liquidação, embora omisso o pedido inicial ou a condenação” (Súmula 254). Embora seja antiga essa súmula, o STF continua considerando-a válida e atual 10. Também para o STJ é manso e pacífico o entendimento de que “os juros de mora incluem-se na liquidação ainda que a sentença exequenda tenha restado omissa quanto ao particular” 11. 5. Direito intertemporal. Alteração da taxa dos juros legais após a sentença Como já se registrou, a alteração superveniente do regime legal da obrigação altera os efeitos da sentença pendente de execução, sem que tal possa se entender como ruptura da coisa julgada. Essa revisão ou modificação de efeitos da condenação, como ensina ARAÚJO CINTRA, “não atinge a coisa julgada que permanecerá intocável nos seus limites objetivos, vinculada à relação jurídica tal como se apresentou no momento da decisão” 12. Como as inovações na base fático jurídica da relação continuativa são aplicáveis aos efeitos da sentença mesmo após a coisa julgada, firme é a jurisprudência que manda alterar a taxa dos juros moratórios a partir da entrada em vigor do atual Código Civil. É que a lei anterior estipulava a taxa de 0,5% ao mês (CC/16, art. 1.062), enquanto a lei nova determina que se observe a taxa vigorante para a mora do pagamento de impostos federais (CC/02, art. 406). Coerente com a natureza de relação jurídica continuativa, aplicável a obrigação de pagar juros legais (moratórios) 13, tem o STJ decidido reiteradamente que: “Se a sentença exequenda foi proferida anteriormente a 11 de janeiro de 2003 (data da entrada em vigor do Código Civil/2002) e determinava juros legais ou juros de 6% ao ano, esta deve ser a taxa aplicada até o advento do novo Código Civil, sendo de 12% ao ano a partir de então, em obediência ao art. 406 desse diploma legal c/c 161, § 1º, do CTN” 14. 6. Como rever os efeitos da sentença afetados por vicissitudes da relação jurídica continuativa Desaparecida ou alterada a situação jurídica definida pela sentença dita determinativa, sua eficácia fica sem objeto sobre que atuar. Para adequar a regulamentação judicial ao novo estado da relação jurídica continuativa, diz o art. 471, nº I, do CPC que a parte interessada poderá “pedir a revisão do que foi estatuído na sentença”. Não é uma rescisão da sentença que se busca mas uma revisão dos seus efeitos diante do novo quadro fático jurídico em que a relação continuativa passou a se desenvolver. Em regra, ter-se-á de buscar uma outra sentença que proceda ao acertamento da situação jurídica inovada após a coisa julgada. Para se alcançar essa nova sentença ter-se-á de recorrer, em princípio, a uma nova ação, que se costuma rotular de ação revisional. Assim, diante, por exemplo, de uma condenação a prestar alimentos, pode-se aforar uma ação de revisão da pensão, para majorá-la ou reduzi-la, ou até mesmo para exonerar, se for o caso, o devedor do encargo, cuja base de sustentação tenha desaparecido 15. PONTES DE MIRANDA ensina que quando a condenação a prestações periódicas futuras se deparar com circunstâncias alteradas de tal modo que não justifique a manutenção, no todo ou em parte, das prestações antes estabelecidas pela sentença, caberá à parte “reclamar pela chamada ação de modificação” 16. Quando a sentença estiver em fase da execução, admite PONTES DE MIRANDA que a modificação possa ser pleiteada tanto por ação separada como pela via incidental dos embargos à execução 17. Também SÉRGIO BERMUDES é de opinião que não seria absurdo usarem-se os embargos do devedor para excluir a incidência da sentença determinativa na hipótese do art. 471, I, do CPC 18. Como não há mais actio iudicati nem embargos à execução de sentença, é perfeitamente lícito ao devedor pretender a redução ou exclusão das prestações desajustadas à nova realidade, por meio de impugnação incidental no bojo do procedimento executivo (CPC, art. 475-J, § 1º e 475-L, II, V e VI). Por outro lado, está certo na jurisprudência, como já se demonstrou, que a inclusão ou definição dos juros legais envolve matéria que independe de pedido originário do credor e de previsão na sentença condenatória, e que, por isso, pode figurar na execução e na liquidação que a prepara, independentemente de pronunciamento sentencial prévio. Como os juros legais, para sua aplicação, não dependem senão de simples cálculos aritméticos, o meio de trazê-los para a execução consiste em simples requerimento instruído com memória de cálculo preparada pela própria parte (CPC, art. 475-B). Se houver impugnação da parte contrária, caberá ao juiz solucioná-la por decisão interlocutória (CPC, arts. 475-H e 475-M, § 3º). 7. Conclusões Diante do exposto, chegamos às seguintes conclusões: A) A obrigação de pagar juros legais (moratórios) envolve relação jurídica continuativa, que, com a superveniência do Código Civil de 2002, sofreu impacto inovativo no que respeita à taxa legal, que era de 6% a.a., ao tempo do Código de 1916 e se alterou para 12% a.a. Os efeitos da condenação a essa verba legal, pronunciadas sob a regência da lei antiga alteraram-se, portanto, a partir da entrada em vigor do atual Código Civil. É remansosa a jurisprudência do STJ a esse respeito. B) Estando o processo em fase de execução de sentença, para a aplicação da nova taxa legal, bastará ao exeqüente apresentar requerimento, acompanhado de memória de cálculo, como se prevê no art. 475-B do CPC. C) O pedido de revisão do que foi estatuído na sentença determinativa, via de regra se dá por meio de ação revisional, porque reclama acertamento sobre questões supervenientes de fato e de direito. Quando, porém, se trata de obrigação legal, como a relacionada com a incidência e cálculo de juros moratórios, tudo se resolve por meio de mero requerimento instruído com memória de cálculo, como simples incidente do procedimento executivo (CPC, art. 475-B). Belo Horizonte, agosto de 2009.
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